segunda-feira, 19 de março de 2012

comodificação


Segue neste post uma seleta com partes do primeiro capítulo [Introdução] do livro Vida Para Consumo – A Transformação das Pessoas em Mercadoria, de Zygmunt Bauman, de 2007.





VIDA PARA CONSUMO

O segredo mais bem guardado da sociedade de consumidores

Talvez não exista pior privação, pior carência, que a dos perdedores na luta simbólica por reconhecimento, por acesso a uma existência socialmente reconhecida, em suma, por humanidade.
Pierre Bourdieu, Meditações pascalianas

Consideremos três casos, escolhidos de maneira aleatória, dos hábitos altamente mutáveis de nossa sociedade cada vez mais “plugada”, ou, para ser mais preciso, sem fio.

Caso 1. Em 2 de março de 2006, o Guardian anunciou que “nos
12 últimos meses as ‘redes sociais’ deixaram de ser o próximo grande sucesso para se transformarem no sucesso do momento”. As visitas ao site MySpace, que um ano antes era o líder inconteste do novo veículo das “redes sociais”, multiplicaram-se por seis, enquanto o site rival Spaces.MSN teve 11 vezes mais acessos do que no ano anterior, e as visitas ao Bebo.com foram multiplicadas por 61.

Um crescimento de fato impressionante – ainda que o surpreendente sucesso do Bebo, recém-chegado à internet na época da reportagem, possa se revelar fogo de palha: como adverte um especialista nos modismos da internet, “pelo menos 40% dos dez mais acessados este ano não serão nada daqui a um ano”. “Lançar um novo site de rede social”, explica ele, é “como abrir o mais novo bar em uma área nobre” (só por ser o mais novo, uma casa brilhando de tão nova ou recém-reformada e reaberta, esse bar atrairia uma multidão “até que murchasse, o que aconteceria com tanta certeza quanto a chegada da ressaca no dia seguinte”, passando seus poderes magnéticos ao “próximo mais novo” na eterna corrida para ser “o point mais quente”, o último “assunto do momento”, o lugar onde “todo mundo que é alguém precisa ser visto”).

Uma vez que finquem seus pés numa escola ou numa comunidade, seja ela física ou eletrônica, os sites de “rede social” se espalham à velocidade de uma “infecção virulenta ao extremo”. Com muita rapidez, deixaram de ser apenas uma opção entre muitas para se tornarem o endereço default de um número crescente de jovens, homens e mulheres. Obviamente, os inventores e promotores das redes eletrônicas tocaram uma corda sensível – ou num nervo exposto e tenso que há muito esperava o tipo certo de estímulo. Eles podem ter motivos para se vangloriar de terem satisfeito uma necessidade real, generalizada e urgente. E qual seria ela? “No cerne das redes sociais está o intercâmbio de informações pessoais.” Os usuários fi cam felizes por “revelarem detalhes íntimos de suas vidas pessoais”, “fornecerem informações precisas” e “compartilharem fotografias”. Estima-se que 61% dos adolescentes britânicos com idades entre 13 e 17 anos “têm um perfil pessoal num site de rede” que possibilite “relacionar - se on-line”.

Na Grã-Bretanha, lugar em que o uso popular de recursos eletrônicos de ponta está ciberanos atrás do Extremo Oriente, os usuários ainda podem acreditar que as “redes sociais” expressam sua liberdade de escolha, e mesmo que constituam uma forma de rebeldia e auto-afirmação juvenil (suposição tornada ainda mais verossímil pelos sinais de pânico que o ardor sem precedentes, induzido pela web e a ela dirigido, desencadeia a cada dia entre seus pais e professores, e pelas reações nervosas dos diretores que interditam o acesso ao Bebo e similares a partir dos computadores de suas escolas). Mas na Coréia do Sul, por exemplo, onde grande porção da vida social já é, como parte da rotina, mediada eletronicamente (ou melhor, onde a vida social já se transformou em vida eletrônica ou cibervida, e a maior parte dela se passa na companhia de um computador, um iPod ou um celular, e apenas secundariamente ao lado de seres de carne e osso), é óbvio para os jovens que eles não têm sequer uma pitada de escolha. Onde eles vivem, levar a vida social eletronicamente mediada não é mais uma opção, mas uma necessidade do tipo “pegar ou largar”. A “morte social” está à espreita dos poucos que ainda não se integraram ao Cyworld, líder sul-coreano no cibermercado da
“cultura mostre e diga”. [a]

Seria um erro grave, contudo, supor que o impulso que leva
à exibição pública do “eu interior” e a disposição de satisfazer esse impulso sejam manifestações de um vício/anseio singular, puramente geracional e relacionado aos adolescentes, por natureza ávidos, como tendem a ser, para colocar um pé na “rede” (termo que está rapidamente substituindo “sociedade”, tanto no discurso das ciências sociais quanto na linguagem popular) e lá permanecer, embora sem muita certeza quanto à melhor maneira de atingir tal objetivo. O novo pendor pela confissão pública não pode ser explicado por fatores “específicos da idade” – não só por eles. Eugène Enriquez resumiu a mensagem que se pode extrair das crescentes evidências coletadas em todos os setores do mundo líquido-moderno dos consumidores:

Desde que não se esqueça que o que antes era invisível – a parcela de intimidade, a vida interior de cada pessoa – agora deve ser exposto no palco público (principalmente nas telas de TV, mas também na ribalta literária), vai-se compreender que aqueles que zelam por sua invisibilidade tendem a ser rejeitados, colocados de lado ou considerados suspeitos de um crime. A nudez física, social e psíquica está na ordem do dia.

Os adolescentes equipados com confessionários eletrônicos
portáteis são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de viver numa sociedade confessional – uma sociedade notória por eliminar a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num dever públicos, e por afastar da comunicação pública qualquer coisa que resista a ser reduzida a confidências privadas, assim como aqueles que se recusam a confidenciá-las. Como Jim Gamble, diretor de uma agência de monitoramento de rede, admitiu ao Guardian, “ela representa tudo aquilo que se vê no playground – a única diferença é que nesse playground não há professores, policiais ou moderadores que ficam de olho no que se passa”.

Caso 2. No mesmo dia, embora numa página bem diferente e sem conexão temática, organizada por outro editor, o Guardian informava ao leitor que “sistemas informáticos estão sendo usados para rejeitá-lo de maneira mais eficaz, dependendo de seu valor para a companhia para a qual você está ligando”. Ou seja, tais sistemas possibilitam que sejam armazenados os registros dos clientes, classifi cando-os a partir de “1”, os clientes de primeira classe que devem ser atendidos no exato momento da ligação e prontamente remetidos a um agente sênior, até “3” (os que “vivem no charco”, como foram classificados no jargão da empresa), a serem colocados no final da fila – e, quando afinal são atendidos, conectados a um agente de baixo escalão.

Assim como no Caso 1, dificilmente seria possível culpar a tecnologia pela nova prática. O novo e refinado software veio para ajudar os administradores que já tinham a imensa necessidade de classificar o crescente exército de clientes ao telefone para que fosse possível executar as práticas divisórias e exclusivistas que já estavam em operação, mas que até o momento eram realizadas com a ajuda de ferramentas primitivas – produtos do tipo “faça-você-mesmo”, feitos em casa ou por uma indústria doméstica, que exigiam mais tempo e eram, é evidente, menos eficazes. Como assinalou o porta-voz de uma das companhias fornecedoras desses sistemas, “a tecnologia só faz pegar os processos em operação e torná-los mais eficientes” – o que significa de maneira instantânea e automática, poupando os empregados da incômoda tarefa de coletar informações, estudar registros, fazer avaliações e tomar decisões distintas a cada chamada, assim como a responsabilidade pelas conseqüências decorrentes. O que, na ausência do equipamento técnico adequado, eles teriam de avaliar forçando o próprio cérebro e gastando grande parte do precioso tempo da companhia é a rentabilidade potencial do cliente para a empresa: o volume de dinheiro ou crédito à disposição do cliente e sua disponibilidade de se desfazer desse capital. “As empresas precisam identifi car os clientes menos valiosos”,
explica outro executivo. Em outras palavras, elas necessitam de uma espécie de “vigilância negativa”, ao estilo do Big Brother de Orwell ou do tipo panóptico, uma geringonça semelhante a uma peneira que basicamente executa a tarefa de desviar os indesejáveis e manter na linha os clientes habituais – reapresentada como o efeito final de uma limpeza bem-feita. Elas precisam de uma forma para alimentar o banco de dados com o tipo de informação capaz, acima de tudo, de rejeitar os “consumidores falhos” – essas ervas daninhas do jardim do consumo, pessoas sem dinheiro, cartões de crédito e/ou entusiasmo por compras, e imunes aos afagos do marketing. Assim, como resultado da seleção negativa, só jogadores ávidos e ricos teriam a permissão de
permanecer no jogo do consumo.

Caso 3. Poucos dias depois, outro editor, em outra página, informava aos leitores que Charles Clarke, ministro britânico do Interior, havia anunciado um novo sistema de imigração, “baseado em pontuações”, destinado a “atrair os melhores e mais inteligentes”5 e, é claro, repelir e manter afastados todos os demais, ainda que essa parte da declaração de Clarke fosse difícil de detectar na versão apresentada no comunicado à imprensa – totalmente omitida ou relegada às letras miúdas. A quem deve atrair o novo sistema? Aqueles com mais dinheiro para investir e mais habilidades para ganhá-lo. “Isso vai nos permitir assegurar”, disse o ministro do Interior, que “só venham para o Reino Unido as pessoas dotadas das habilidades de que o país necessita, evitando, ao mesmo tempo, que os destituídos dessas habilidades secandidatem.” E como vai funcionar esse sistema? Por exemplo:
Kay, uma jovem da Nova Zelândia, com diploma de mestrado,
mas com um emprego humilde e muito mal pago, não conseguiu
atingir os 75 pontos que a habilitariam a requerer a imigração. Precisaria, em primeiro lugar, obter uma oferta de emprego de uma empresa britânica, o que então seria registrado em seu favor, como prova de que suas habilidades são do tipo “que o país necessita”.

Charles Clarke não é o primeiro a aplicar à seleção de seres humanos a regra do mercado de escolher o melhor produto da prateleira. Como assinalou Nicolas Sarkozy, ex-ministro do Interior e atual presidente francês, “a imigração seletiva é praticada por quase todas as democracias do mundo”. E ele prosseguiu exigindo que “a França seja capaz de escolher seus imigrantes segundo nossas necessidades”.

Três casos apresentados em três diferentes seções do jornal e supostamente pertencentes a domínios da vida muito distintos, cada qual governado por seu próprio conjunto de regras, supervisionado e administrado por agências mutuamente independentes. Casos que parecem tão dessemelhantes, que dizem respeito a pessoas com origens, idades e interesses amplamente diversos, confrontadas com desafios bastante variados e lutando para resolver problemas muito diferentes. Pode-se indagar: haveria alguma razão para colocá-las lado a lado e considerá-las como espécimes de uma mesma categoria? A resposta é sim, há uma razão, e muito poderosa, para conectá-las.

Os colegiais de ambos os sexos que expõem suas qualidades com avidez e entusiasmo na esperança de atrair a atenção para eles e, quem sabe, obter o reconhecimento e a aprovação exigidos para permanecer no jogo da sociabilidade; os clientes potenciais com necessidade de ampliar seus registros de gastos e limites de crédito para obter um serviço melhor; os pretensos imigrantes lutando para acumular pontuação, como prova da existência de uma demanda por seus serviços, para que seus requerimentos sejam levados em consideração – todas as três categorias de pessoas, aparentemente tão distintas, são aliciadas, estimuladas ou forçadas a promover uma mercadoria atraente e desejável. Para tanto, fazem o máximo possível e usam os melhores recursos que têm à disposição para aumentar o valor de mercado dos produtos que estão vendendo. E os produtos que são encorajadas a colocar no mercado, promover e vender são elas mesmas. São, ao mesmo tempo, os promotores das mercadorias e as mercadorias que promovem.

São, simultaneamente, o produto e seus agentes de marketing, os bens e seus vendedores (e permitam-me acrescentar que qualquer acadêmico que já se inscreveu para um emprego como docente ou para receber fundos de pesquisa vai reconhecer suas próprias dificuldades nessa experiência).  Seja lá qual for o nicho em que possam ser encaixados pelos construtores de tabelas estatísticas, todos habitam o mesmo espaço social conhecido como mercado. Não importa a rubrica sob a qual sejam classificados por arquivistas do governo ou jornalistas investigativos, a atividade em que todos estão engajados (por escolha, necessidade ou, o que é mais comum, ambas) é o marketing. O teste em que precisam passar para obter os prêmios sociais que ambicionam exige que remodelem a si mesmos como mercadorias, ou seja, como produtos que são capazes de bter tenção e atrair demanda e fregueses.

Siegfried Kracauer foi um pensador dotado da estranha capacidade e distinguir os contornos quase invisíveis e incipientes e tendências indicativas do futuro ainda perdidos numa massa disforme de modismos e idiossincrasias passageiros. Ainda no final da década de 1920, quando a iminente transformação da sociedade de produtores em sociedade de consumidores estava um estágio embrionário ou, na melhor das hipóteses, incipiente, portanto passava despercebida a observadores menos atentos perspicazes, ele havia notado que

a corrida aos inúmeros salões de beleza nasce, em parte, de e ocupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um luxo. Por medo de caírem em desuso como obsoletos, senhoras e cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esportes ara se manterem esguios. “Como posso ficar bela?”, indaga o título e um folheto recém-lançado no mercado; os anúncios de jornal dizem que ele apresenta maneiras de “permanecer jovem e bonita agora e para sempre”.

Os hábitos emergentes que Kracauer registrou na década de
1920 como uma curiosidade berlinense digna de nota avançaram e se espalharam como fogo numa floresta, até se transformarem em rotina diária (ou pelo menos num sonho) por todo o planeta. Oitenta anos depois, Germaine Greer observava que “mesmo nos rincões mais distantes do noroeste da China, as mulheres deixavam de lado seus pijamas em favor de sutiãs acolchoados e saias insinuantes, faziam permanente e pintavam seus cabelos lisos, e economizavam para comprar cosméticos. Isso era chamado de liberalização.”

Meio século após Kracauer observar e descrever as novas
paixões das mulheres berlinenses, outro notável pensador alemão, Jürgen Habermas, escrevendo à época em que a sociedade de produtores estava chegando ao final de seus dias, e portanto com o benefício da percepção a posteriori, apresentava a “comodificação do capital e do trabalho” como a principal função, a própria raison d’être, do Estado capitalista. Ele apontou que, se a reprodução da sociedade capitalista é obtida mediante encontros transnacionais interminavelmente repetidos entre o capital no papel de comprador e o trabalho no de mercadoria, então o Estado capitalista deve cuidar para que esses encontros ocorram com regularidade e atinjam seus propósitos, ou seja, culminem em transações de compra e venda.

No entanto, para que se alcance tal culminação em todos os encontros, ou ao menos em um número significativo deles, o capital deve ser capaz de pagar o preço corrente da mercadoria, estar disposto a fazê-lo e ser estimulado a agir de acordo com essa disposição – garantido por uma política de seguros endossada pelo Estado contra os riscos causados pelos notórios caprichos dos mercados de produtos. O trabalho, por outro lado, deve ser mantido em condição impecável, pronto para atrair o olhar de potenciais compradores, conseguir a aprovação destes e aliciá-los a comprar o que estão vendo. Assim como encorajar os capitalistas a gastarem seu dinheiro com mão-de-obra, torná-la atraente para esses compradores é pouco provável sem a ativa colaboração do Estado. As pessoas em busca de trabalho precisam ser adequadamente nutridas e saudáveis, acostumadas a um comportamento disciplinado e possuidoras das habilidades exigidas pelas rotinas de trabalho dos empregos que procuram.

Hoje em dia, déficits de poder e recursos afligem a maioria dos Estados-nação que luta para desempenhar a contento a tarefa da comodificação – déficits causados pela exposição do capital nativo à competição cada vez mais intensa resultante da globalização dos mercados de capitais, trabalho e mercadorias, e pela difusão planetária das modernas formas de produção e comércio, assim como dos déficits provocados pelos custos, em rápido crescimento, do “Estado de bem-estar social”, esse instrumento supremo e talvez indispensável da comodificação do trabalho.

Aconteceu que, no caminho entre a sociedade de produtores e a sociedade de consumidores, as tarefas envolvidas na comodificação e recomodificação do capital e do trabalho passaram por processos simultâneos de desregulamentação e privatização contínuas, profundas e aparentemente irreversíveis, embora ainda incompletas.

A velocidade e o ritmo acelerado desses processos foram e
continuam a ser tudo, menos uniformes. Na maioria dos países (embora não em todos), eles parecem muito menos radicais no caso do trabalho do que até agora o foram em relação ao capital, cujos novos empreendimentos continuam a ser estimulados – quase como regra – pelos cofres governamentais numa escala crescente e não reduzida. Além disso, a capacidade e a disposição do capital para comprar trabalho continuam sendo reforçadas com regularidade pelo Estado, que faz o possível para manter baixo o “custo da mão-de-obra” mediante o desmantelamento dos mecanismos de barganha coletiva e proteção do emprego, e pela imposição de freios jurídicos às ações defensivas dos sindicatos – e que com muita freqüência mantêm a solvência das empresas taxando importações, oferecendo incentivos fiscais para exportações e subsidiando os dividendos dos acionistas por meio de comissões governamentais pagas com dinheiro público. Para apoiar, por exemplo, a fracassada promessa da Casa Branca de manter baixos os preços nos postos de gasolina sem ameaçar os lucros dos acionistas, o governo Bush confirmou, em fevereiro de 2006, que iria renunciar a 7 bilhões de dólares em royalties nos próximos cinco anos (soma que alguns estimam ser o quádruplo), a fim de encorajar a indústria norte-americana do petróleo a prospectar o produto nas águas de propriedade pública do golfo do México (“É como dar subsídios a um peixe para que ele nade”, foi a reação de um deputado a essa notícia: “É indefensável subsidiar essas empresas com os preços do petróleo e do gás tão elevados”.)

A tarefa da recomodificação do trabalho foi a mais afetada
até agora pelos processos gêmeos da desregulamentação e da
privatização. Essa tarefa está sendo excluída da responsabilidade governamental direta, mediante a “terceirização”, completa ou parcial, do arcabouço institucional essencial à prestação de serviços cruciais para manter vendável a mão-de-obra (como no caso de escolas, habitações, cuidados com os idosos e um número crescente de serviços médicos). Assim, a preocupação de garantir a “vendabilidade” da mão-de-obra em massa é deixada para homens e mulheres como indivíduos (por exemplo: transferindo os custos da aquisição de habilidades profi ssionais para fundos privados – e pessoais), e estes são agora aconselhados por políticos e persuadidos por publicitários a usarem seus próprios recursos e bom senso para permanecerem no mercado, aumentarem seu valor mercadológico, ou pelo menos não o deixarem cair, e obterem o reconhecimento de potenciais compradores. Tendo passado vários anos observando de perto (quase como participante) os mutáveis padrões de emprego nos setores mais avançados da economia norte-americana, Arlie Russell Hochschild descobriu e documentou tendências surpreendentemente semelhantes às encontradas na Europa e descritas de forma muito detalhada por Luc Boltanski e Eve Chiapello como o “novo espírito do capitalismo”. A preferência, entre os empregadores, por empregados “flutuantes”, descomprometidos, flexíveis, “generalistas” e, em última instância, descartáveis (do tipo “pau-pra-toda-obra”, em vez de especializados e submetidos a um treinamento estritamente focalizado), foi o mais seminal de seus achados. Nas palavras do próprio Hochschild:


Desde 1997, um novo termo – “chateação zero”*1– começou a circular em silêncio pelo Vale do Silício, terra natal da revolução informática nos Estados Unidos. Em sua origem, signifi cava o movimento sem fricção de um objeto físico como uma bicicleta ou um skate. Depois foi aplicado a empregados que, independentemente de incentivos fi nanceiros, trocavam com facilidade de emprego. Mais recentemente, passou a signifi car “descomprometido” ou “desobrigado”. Um empregador “pontocom” pode comentar, com aprovação, sobre um empregado: “Ele é um chateação zero”, querendo dizer que ele está disponível para assumir atribuições extras, responder a chamados de emergência, ou ser realocado a qualquer momento. Segundo Po Bronson, pesquisador da cultura do Vale do Silício, “chateação zero é ótimo. Por algum tempo, os novos candidatos eram jocosamente indagados sobre seu ‘coefi ciente de chateação’”.


Morar a alguma distância do Vale do Silício e/ou carregar o
peso de uma mulher ou fi lho aumentam o “coeficiente de chateação” e reduzem as chances de emprego do candidato. Os empregadores desejam que seus futuros empregados nadem em vez de caminhar e pratiquem surfe em vez de nadar. O empregado ideal seria uma pessoa sem vínculos, compromissos ou ligações emocionais anteriores, e que evite estabelecê-los agora; uma pessoa pronta a assumir qualquer tarefa que lhe apareça e preparada para se reajustar e refocalizar de imediato suas próprias inclinações, abraçando novas prioridades e abandonando as adquiridas anteriormente; uma pessoa acostumada a um ambiente em que “acostumar-se” em si – a um emprego, habilidade ou modo de fazer as coisas – é algo malvisto e, portanto, imprudente; além de tudo, uma pessoa que deixará a empresa quando não for mais necessária, sem queixa nem processo. Uma pessoa que também
considera as perspectivas de longo prazo, as trajetórias de carreira gravadas na pedra e qualquer tipo de estabilidade mais desconcertantes e assustadoras do que a ausência das mesmas.

A arte da “recomodificação” do trabalho em sua forma nova e atualizada é singularmente imprópria para ser aprendida a partir da pesada burocracia governamental, notoriamente inerte, presa à tradição, resistente à mudança e amante da rotina. E essa burocracia é particularmente imprópria para cultivá-la, ensinála e inculcá-la. É melhor deixar esse trabalho para os mercados de consumo, já conhecidos por sua perícia em treinar seus clientes em artes similares e por fl orescerem a partir disso. E assim se faz. Transferir para o mercado a tarefa de recomodifi car o trabalho é o signifi cado mais profundo da conversão do Estado ao culto da “desregulamentação” e da “privatização”.

(...)

Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A “subjetividade” do “sujeito”, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fi m para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadorias; ou antes, sua dissolução no mar de mercadorias em que, para citar aquela que talvez seja a mais citada entre as muitas sugestões citáveis de Georg Simmel, os diferentes signifi cados das coisas, “e portanto as próprias coisas, são vivenciados como imateriais”, aparecendo “num tom uniformemente monótono e cinzento” – enquanto tudo “flutua com igual gravidade específi ca na corrente constante do dinheiro”. A tarefa dos consumidores, e o principal motivo que os estimula a se engajar numa incessante atividade de consumo, é sair dessa invisibilidade e imaterialidade cinza e monótona, destacandose da massa de objetos indistinguíveis “que fl utuam com igual gravidade específica” e assim captar o olhar dos consumidores (blasé!)...

O primeiro álbum gravado por Corinne Bailey Rae, cantora de 27 anos nascida em Leeds e contratada em 2005 por um homem do Departamento de Artistas & Repertório da EMI, ganhou o disco de platina em apenas quatro meses.13 Um fato extraordinário. Uma em cada um milhão ou centenas de milhões de pessoas chegam ao estrelato depois de uma breve aparição numa banda independente e de um emprego como atendente numa boate de música soul. Uma probabilidade não maior, talvez ainda menor, do que a de ganhar na loteria (mas observemos que, semana após semana, milhões de pessoas continuam comprando bilhetes lotéricos). “Minha mãe é professora de uma escola primária”, disse Corinne a um entrevistador, “e quando ela pergunta aos meninos o que eles querem ser quando crescer, eles dizem: ‘Famoso.’ Ela pergunta por que motivo e eles respondem: ‘Não sei, só quero ser famoso.’”

Nesses sonhos, “ser famoso” não signifi ca nada mais (mas também nada menos!) do que aparecer nas primeiras páginas de milhares de revistas e em milhões de telas, ser visto, notado, comentado e, portanto, presumivelmente desejado por muitos – assim como sapatos, saias ou acessórios exibidos nas revistas luxuosas e nas telas de TV, e por isso vistos, notados, comentados, desejados... “Há mais coisas na vida além da mídia”, observa Germaine Greer, “mas não muito ... Na era da informação, a invisibilidade é equivalente à morte.” A recomodificação constante, ininterrupta,

é para a mercadoria. Logo, também para o consumidor, equivale ao que é o metabolismo para os organismos vivos.
Além de sonhar com a fama, outro sonho, o de não mais se dissolver e permanecer dissolvido na massa cinzenta, sem face e insípida das mercadorias, de se tornar uma mercadoria notável, notada e cobiçada, uma mercadoria comentada, que se destaca da massa de mercadorias, impossível de ser ignorada, ridicularizada ou rejeitada. Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas.

Escrevendo de dentro da incipiente sociedade de produtores,
Karl Marx censurou os economistas da época pela falácia do “fetichismo da mercadoria”: o hábito de, por ação ou omissão, ignorar ou esconder a interação humana por trás do movimento das mercadorias. Como se estas, por conta própria, travassem relações entre si a despeito da mediação humana. A descoberta da compra e venda da capacidade de trabalho como a essência das “relações industriais” ocultas no fenômeno da “circulação de mercadorias”, insistiu Marx, foi tão chocante quanto revolucionária: um primeiro passo rumo à restauração da substância humana na realidade cada vez mais desumanizada da exploração capitalista.

Um pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco na ilusão provocada pelo fetichismo da mercadoria: sim, diria
ele, a capacidade de trabalho era vendida e comprada como se fosse uma mercadoria como outra qualquer, mas não, insistiria Polanyi, a capacidade de trabalho não era nem poderia ser uma mercadoria “como” outra qualquer. A impressão de que o trabalho era pura e simplesmente uma mercadoria só podia ser uma grande mistifi cação do verdadeiro estado das coisas, já que a “capacidade de trabalho” não pode ser comparada nem vendida em separado de seus portadores. De maneira distinta de outras mercadorias, os compradores não podem levar sua compra para casa. O que compraram não se torna sua propriedade exclusiva e incondicional, e eles não estão livres para utereet abutere (usar e abusar) dela à vontade, como estão no caso de outras aquisições. A transação que parece “apenas comercial” (recordemos a queixa de Thomas Carlyle, no início do século XX, de que relações humanas multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero “nexo fi nanceiro”) inevitavelmente liga portadores e compradores num vínculo mútuo e numa interdependência estreita. No mercado de trabalho, um relacionamento humano nasce de cada transação comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação do fetichismo da mercadoria, e na seqüência de cada transação logo aparecem provas de sua falsidade, assim como da ilusão ou auto-ilusão subseqüente.

Se foi o destino do fetichismo da mercadoria ocultar das vistas a substância demasiado humana da sociedade de produtores, é papel do fetichismo da subjetividade ocultar a realidade demasiado comodificada da sociedade de consumidores.

A “subjetividade” numa sociedade de consumidores, assim como a “mercadoria” numa sociedade de produtores, é (para usar o oportuno conceito de Bruno Latour) um fatiche– um produto profundamente humano elevado à categoria de autoridade sobre-humana mediante o esquecimento ou a condenação à irrelevância de suas origens demasiado humanas, juntamente com o conjunto de ações humanas que levaram ao seu aparecimento e que foram condição sine qua non para que isso ocorresse.

No caso da mercadoria na sociedade de produtores, foi o ato de comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-la de um valor de mercado, transformou o produto do trabalho numa mercadoria – de uma forma não visível (e sendo oculta) na aparência de uma interação autônoma de mercadorias. No caso da subjetividade na sociedade de consumidores, é a vez de comprar e vender os símbolos empregados na construção da identidade – a expressão supostamente pública do “self” que na verdade é o “simulacro” de Jean Baudrillard, colocando a “representação” no lugar daquilo que ela deveria representar –, a serem eliminados da aparência do produto fi nal. A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compra – opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que se supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização dos traços materiais – “objetificados” – das escolhas do consumidor.

(...)

Há limites até onde se pode estender a “soberania do consumidor” prometida pela sociedade dos consumidores – limites intransponíveis –, e de cada encontro entre seres humanos esses limites tendem a emergir fortalecidos, apesar (ou por causa) das pressões para retraçá-los.

O fetichismo da subjetividade, tal como, antes dele, o fetichismo da mercadoria, baseia-se numa mentira, e assim é pela mesma razão de seu predecessor – ainda que as duas variedades de fetichismo centralizem duas operações encobertas em lados opostos da dialética sujeito-objeto entranhada na condição existencial humana. Ambas as variações tropeçam e caem diante do mesmo obstáculo: a teimosia do sujeito humano, que resiste bravamente às repetidas tentativas de objetificá-lo.

Na sociedade de consumidores, a dualidade sujeito-objeto tende a ser incluída sob a dualidade consumidor-mercadoria. Nas relações humanas, a soberania do sujeito é, portanto, reclassifi cada e representada como a soberania do consumidor – enquanto a resistência ao objeto, derivada de sua soberania não inteiramente suprimida, embora rudimentar, é oferecida à percepção como a inadequação, inconsistência ou imperfeição de uma mercadoria mal escolhida.

O consumismo dirigido para o mercado tem uma receita para enfrentar esse tipo de inconveniência: a troca de uma mercadoria defeituosa, ou apenas imperfeita e não plenamente satisfatória, por uma nova e aperfeiçoada. A receita tende a ser reapresentada como um estratagema a que os consumidores experientes recorrem automaticamente de modo quase irrefletido, a partir de um hábito aprendido e interiorizado. Afinal de contas, nos mercados de consumidores-mercadorias, a necessidade de substituir objetos de consumo “defasados”, menos que plenamente satisfatórios e/ou não mais desejados está inscrita no design dos produtos e nas campanhas publicitárias calculadas para o crescimento constante das vendas. A curta expectativa de vida de um produto na prática e na utilidade proclamada está incluída na estratégia de marketing e no cálculo de lucros: tende a ser preconcebida, prescrita e instilada nas práticas dos consumidores mediante a apoteose das novas ofertas (de hoje) e a difamação das antigas (de ontem).

Entre as maneiras com que o consumidor enfrenta a insatisfação, a principal é descartar os objetos que a causam. A sociedade de consumidores desvaloriza a durabilidade, igualando “velho” a “defasado”, impróprio para continuar sendo utilizado e destinado à lata de lixo. É pela alta taxa de desperdício, e pela decrescente distância temporal entre o brotar e o murchar do desejo, que o fetichismo da subjetividade se mantém vivo e digno de crédito, apesar da interminável série de desapontamentos que ele causa. A sociedade de consumidores é impensável sem
uma florescente indústria de remoção do lixo. Não se espera dos consumidores que jurem lealdade aos objetos que obtêm com a intenção de consumir.

O padrão cada vez mais comum de uma “relação pura”, revelado e descrito por Anthony Giddens em seu livro Transformações da intimidade, pode ser interpretado como um transplante da regra do mercado de bens para o domínio dos vínculos humanos. A prática da “relação pura”, bastante observada e por vezes louvada no folclore popular e em sua representação pelos meios de comunicação, pode ser visualizada à semelhança da presumida ou postulada soberania do consumidor. O impacto da diferença entre o relacionamento parceiro-parceiro e o ato de adquirir bens de consumo comuns, distinção essa muito profunda, originada na reciprocidade do acordo necessário para que a relação se inicie, é minimizado (se não tornado totalmente irrelevante) pela cláusula que torna a decisão de um dos parceiros suficiente para encerrá-la. É essa cláusula que põe a nu a similaridade sobreposta à diferença: no modelo de uma “relação pura”, tal como nos mercados de bens, os parceiros têm o direito de tratar um ao outro como tratam os objetos de consumo. Uma vez que a permissão (e a prescrição) de rejeitar e substituir um objeto de consumo que não traz mais satisfação total seja estendida às relações de parceria, os parceiros são reduzidos ao status de objetos de consumo. De maneira paradoxal, eles são classifi cados assim por causa de sua luta para obter e monopolizar as prerrogativas do consumidor soberano...

Uma “relação pura” centralizada na utilidade e na satisfação é, evidentemente, o exato oposto de amizade, devoção, solidariedade e amor – todas aquelas relações “Eu-Você” destinadas a desempenhar o papel de cimento no edifício do convívio humano. Sua “pureza” é avaliada, em última instância, pela ausência de ingredientes eticamente carregados. A atração de uma “relação pura” está na deslegitimação, para citar Ivan Klima, de questões como: “Onde está a fronteira entre o direito à felicidade pessoal e a um novo amor, por um lado, e o egoísmo irresponsável que desintegraria a família e talvez prejudicasse os fi lhos, de outro?” Em última instância, essa atração está em estabelecer o atar e desatar de vínculos humanos como ações moralmente “adiafóricas” (indiferentes, neutras), que portanto livram os atores da responsabilidade que o amor, para o bem ou para o mal, promete e luta para construir e preservar. “A criação de um relacionamento bom e duradouro”, em total oposição à busca de prazer por meio de objetos de consumo, “exige um esforço enorme” – um aspecto que a “relação pura” nega de forma enfática em nome de alguns outros valores, entre os quais não fi gura a responsabilidade pelo outro, fundamental em termos éticos. Mas aquilo com o que o amor, em completa oposição a um mero desejo de satisfação, deve ser comparado, sugere Klima,

é a criação de uma obra de arte ... Isso também exige imaginação, concentração total, a combinação de todos os aspectos da personalidade humana, sacrifício pessoal por parte do artista e liberdade absoluta. Mas acima de tudo, tal como se dá com a criação artística, o amor exige ação, ou seja, atividades e comportamentos não-rotineiros, assim como uma atenção constante à natureza intrínseca do parceiro, o esforço de compreender sua individualidade, além de respeito. E, por fi m, ele precisa de tolerância, da consciência de que não deve impor suas perspectivas ou opiniões ao companheiro ou atrapalhar sua felicidade.

O amor, podemos dizer, abstém-se de prometer uma passagem
fácil para a felicidade e a signifi cação. Uma “relação pura” inspirada por práticas consumistas promete que essa passagem será fácil e livre de problemas, enquanto faz a felicidade e o propósito reféns do destino – é mais como ganhar na loteria do que um ato de criação e esforço.


[a] Nota do autor deste blog: O livro de Bauman foi lançado no em 2007, mas, obviamente, os comentários de Bauman são pertinentes e diretamente identificados com o atual, mais famoso e importante site de relacionamentos, o “facebook”.