quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

ciclos econômicos

Crise financeira ou sociometabólica?

"Uma coisa a perceber sobre o nosso sistema bancário de reservas fracionárias
é que, como no jogo das cadeiras, enquanto a música estiver tocando,
não há perdedores [para quem estiver no jogo]"

 Andrew Gause, Historiador Monetário


Existem milhões de sites, vídeos, textos, artigos, livros, filmes, etc, etc...  que fornecem explicações sobre a crise financeira que todos testemunhamos, vivenciamos e somos vítimas. No entanto a grande maioria delas aborda somente seus efeitos e consequências, numa miríade de termos técnicos que nem mesmo economistas entendem. Falam de "controle da inflação" como se a mesma fosse um ente superior poderoso e intangível, e 'culpam' determinados setores da economia, ou crises em países alhures, pelas elevações e (raras) quedas nos preços. Nada poderia ser mais falacioso e maquiado.

Neste texto (que será dividido em vários posts), tentarei abordar o tema da denominada crise financeira. Um tema espinhoso, denso, controverso e polêmico. Mas que deve ser enfrentado, visto e re-visto, pois absorve todas as esferas de nossas vidas, quer queiramos ou não. Não me considero suficientemente capaz e competente para abordar de forma ampla e profunda este tema, mas temo que acumulei informações, dados e opiniões que são pertinentes e até mesmo reveladores. Buscarei portanto, neste espaço, organiza-las de forma coerente e concisa, "traduzindo" -- na medida da minha capacidade -- o "economês" para uma linguagem acessível aos leitores interessados.

Utilizarei de diversas fontes e referências, as quais, por comodidade, tomarei a liberdade de reunir somente no final, num post específico de referências. No entanto eu gostaria de chamar a atenção do leitor para uma referência em partucular (de onde algumas ilustrações deste texto são retiradas) - trata-se da do Cartoon animado Money as Debt produzido pelo artista e ativista Paul Grignon, que explica de forma didática e reveladora o funcionamento do sistema monetário atual([1]).

Neste post o tema é: os ciclos econômicos.

Ciclos Econômicos


O conceito de ciclo econômico refere-se, em princípio, às flutuações da atividade econômica em períodos de vários mêses ou anos. O ciclo envolve uma alternância de fases de crescimento relativamente rápido (recuperação e prosperidade), com períodos de relativa estagnação ou declínio (contração ou recessão).

Os ciclos econômicos são caracterizados por uma dinâmica envolvendo um grande número de atividades econômicas e sociais, e não somente pelo movimento de uma única variável, embora essas flutuações sejam geralmente medidas em termos de variação do Produto Interno Bruto dos países ou dados monetários como estoque de dinheiro na economia.

Por ser um dos temas mais controversos da economia, o próprio termo "ciclo" parece soar alarmes para muitos cientistas sociais. Eles presumem que signifique algo mecanicista ou mesmo místico, destituído de validade científica, além de ser algo não comprovado, se não improvável. Sistemas sociais, ao contrário do mundo físico, não são apenas extremamente complexos, mas auto-direcionados e em constante evolução.

A palavra "ciclo", para alguns, evoca imagens de mecanismos de relógio exibindo periodicidades e regularidades estritas num padrão mal adaptado para descrever processos sociais. Esta é uma das razões para muitos estudiosos adotaram a terminologia "ondas" (waves), no lugar de "ciclos". Mas formalmente, nem onda nem ciclo transmitem uma implicação inerentemente mecanicista e fechada. Ambos os termos podem se referir tanto a periodicidade física ou a uma sequência não-periódica repetindo-se. No mundo físico (específicamente na dinâmica), os ciclos são fundamentais para a estruturação de massa e energia em todo o universo em todos os níveis, mas todos os níveis também manifestam mudanças não-cíclicas irreversíveis no tempo. A radiação eletromagnética, por exemplo, é uma oscilação em fase dos campos elétricos e magnéticos, e é tanto cíclico (natureza ondulatória) como corpuscular (natureza das partículas).

A primeira exposição sistemática acerca de crises econômicas periódicas, em oposição à teoria existente de equilíbrio economico, foi proposta por Jean Charles Léonard de Sismondi ([2]). Antes, a economia clássica negava a existência de ciclos econômicos, alegava que  fatores externos, nomeadamente a guerra, eram sua causa. Sismondi encontrou evidências e justificativas para sua teoria no Pânico de 1825, que foi indiscutivelmente a primeira crise econômica internacional que ocorreu em tempos de paz. Sismondi e seu contemporâneo Robert Owen, identificaram a causa dos ciclos econômicos como superprodução e subconsumo, ocasionados em especial, pela desigualdade de riqueza. À época, eles defenderam a intervenção do governo e a adoção do socialismo, respectivamente, como a possível solução. O trabalho não gerou interesse entre os economistas clássicos, embora tenham lançado a teoria do subconsumo, desenvolvida como um ramo da economia, o qual foi posteriormente sistematizado na economia keynesiana nos anos 1930.

As crises periódicas do capitalismo formaram uma das bases para as críticas à ecônomia política de Karl Marx, o qual dedicou centenas de páginas de Das Kapital (cujo primeiro volume é de 1867) às crises. No Manifesto Comunista de 1848, Karl Marx e Friedrich Engels descreveram as tendências de crise do capitalismo em termos de "a destruição forçada de uma massa de forças produtivas":

(...) uma sociedade que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, é como o feiticeiro que já não é capaz de controlar os poderes do mundo que ele criou através de suas magias. (...) Basta mencionar as crises comerciais que, por seu caráter periódico colocam a existência de toda a sociedade burguesa em julgamento, de forma cada vez mais ameaçadora. Nessas crises, uma grande parte, não só da produção existente, mas também das forças produtivas criadas anteriormente, é periodicamente destruída. Nessas crises, eclode uma epidemia, a qual, em todas as épocas anteriores teria parecido um absurdo - a epidemia da superprodução. (...) E como a burguesia vence essas crises? Por um lado, pela destruição violenta de uma massa de forças produtivas, por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. Isto é, com a pavimentação do caminho para crises mais extensas e mais destruidoras, e diminuindo as formas pelas quais crises são evitadas.

Lembrando que Marx e Engels escreveram estas palavras em 1848, e portanto, ha mais de 160 anos, e mais de 80 anos antes da chegada da crise de 29 e da Grande Depressão que se seguiu e arruinou a economia dos Estadosunidos e do mundo. Evidentemente, o manifesto - como o próprio nome sugere - aborda a questão de forma, digamos, didática e sintética, mas os mecanismos causadores das crises de sua época foram muito bem explorados por Marx em seus livros e teorias([3]).

Portanto, o chamado ciclo econômico, ou "ciclo do comércio" do capitalismo (de 7 a 11 anos) já era conhecido de todo homem de negócios do século XIX, quando uma periodicidade um tanto mais longa começou a chamar a atenção no fim deste século, a medida em que observadores inferiram em retrospecto as peripécias das décadas anteriores. Clamava-se por uma explicação convincente que indicasse, sob a ótica do capital, as prováveis causas dos ciclos.

Em um artigo publicado em Novembro de 2000 [[4]] por Alan Woods, vemos que nos debates que tiveram lugar no seio da Internacional Comunista no início dos anos 1920 a questão do ciclo econômico foi discutida com alguma profundidade. Os ultra-esquerdistas [como Stalin, p.e.] defendiam o argumento de que aquele período de grandes conturbaçoes representava a crise final do capitalismo. Alegavam que o capitalismo iria entrar em colapso sob o peso de suas próprias contradições. Lenin e Trotsky, ao contrário, apontavam que não há tal coisa como a crise final do capitalismo, no sentido de um colapso automático do sistema. Deixado a si mesmo, o sistema capitalista sempre encontraria uma maneira de superar e sair da crise - embora a um custo mais terrível para a classe trabalhadora e para a civilização humana.

Kondratiev

Foi então que, na década de 20 um economista russo Nikolai Dmitrievich Kondratiev (*1892, +1932) desenvolveu uma teoria baseada numa série de "ondas longas" (de 50 a 60 anos) que vieram a ser conhecidas por ondas de Kondratiev. Tanto para os ciclos mais curtos como as ondas longas, a delimitação exata de cada período é controversa, porém, em linhas gerais, é possível estabelecer a existência de alguns desses períodos, e - novamente olhando em retrospécto - seria também possível inferir possíveis causas e características de cada um.

Kondratiev foi diretor do Instituto de Investigações Econômicas de Moscou. Foi um economista talentoso e original, e teve um trágico destino. Como tantos intelectuais proeminentes que brilharam nos primeiros anos do poder soviético, ele terminou sua vida em um dos campos de trabalhos forçados de Stalin. A natureza trágica de sua morte e a natureza corajosa e notavelmente original de suas hipóteses cercou seu nome com uma aura quase mística. Em alguns círculos ele é visto como um grande guru cuja teoria de "ondas longas" serve para explicar (e, além disso prever) amplos desenvolvimentos históricos.

Kondratiev baseou sua teoria na análise de Marx sobre o ciclo de comércio - o ciclo normal de booms e recessões que é  característica fundamental do capitalismo. No entanto, não há nenhuma relação entre ambos. A teoria de Marx do ciclo capitalista é precisamente explicada nos três volumes de O Capital. Todo o processo é apresentado em grande detalhe e o mecanismo preciso é explicado a partir de qualquer ponto de vista. Por outro lado, a teoria de Kondratiev é uma hipótese muito particular, com base em alguns fatos arbitrariamente seleccionados para "ajustar" em seu caso.




[Nicolai Kondratiev]


Fato é que Kondratiev não era um  "marxista contaminado pela ideologia comunista", mas tão somente um dedicado pesquisador e acadêmico. Suas teorias foram exibidas pela primeira vez em uma série de artigos no início dos anos 1920 no Terceiro Congresso da Internacional Comunista em 1922. Em 1924 ele publicou um artigo com o título A Estatística e a concepção dinâmica e flutuações Econômicas, que estabelece a sua tese básica. No ano seguinte, ele resumiu suas idéias em forma de livro. Mas por esta altura o clima na União Soviética já estava mudando. A ascensão da burocracia stalinista significava que todos os que não servilmente seguissem os ditames da liderança estavam em perigo de cair em desgraça. Em 1922 Trotsky fez algumas críticas à teoria de Kondratiev, mas o regime de Stalin usou outros métodos para resolver as diferenças. Kondratiev foi silenciado, afastado do seu posto e caiu na obscuridade. Então, no final de 1930, quando Stalin estava já a preparar os métodos que mais tarde iriam se transformar na infame "Grande Purga", Kondratiev foi repentinamente preso e acusado de ser o chefe do inexistente partido dos trabalhadores camponeses. A acusação era absurda. Mas, mesmo sem a pretensão de um julgamento Kondratiev foi enviado para a Sibéria, onde morreu em setembro de 1932, sob circunstâncias que nunca foram esclarecidas.



Schumpeter

Desta sorte, posteriormente, Joseph Schumpeter (*1883, +1950), definiu quatro fases para um ciclo econômico: (1) crescimento, (boom); (2) recessão; (3) depressão; (4) recuperação. Segundo sua teoria, embora os ciclos econômicos se repitam, e sejam caracterizados por períodos de expansão e contração da atividade econômica, não são necessariamente periódicos. São, no entanto, fenômenos característicos das economias de mercado, impulsionados pelos paradigmas provocados por inovações  empresariais.


[Joseph Schumpeter]

Schumpeter elaborou este conceito, tornando-se central para sua teoria econômica, sendo que a fonte mais provável pode ser encontrada em seu livro Ciclos de Negócios de 1939. Foi a partir deste livro que o mundo ocidental conheceu pela primeira vez Nikolai Kondratiev e seu ciclo de onda longa. Tais ciclos, Schumpeter acreditava, eram causados ​​pelas inovações, que  caracterizam uma fonte de poder de mercado temporário, corroendo os lucros e posição das empresas mais antigas, que vem a sucumbir à pressão destas inovações.


[Ondas de Inovação de Schumpeter]


Na visão de Schumpeter, a atuação "inovadora" da grande empresa (e não mais do empresário/empreededor) é a força que sustenta, à longo prazo, o crescimento econômico, mesmo que isso leve à falência companias estabelecidas (e ao desemprego em massa dos trabalhadores) que tenham obtido algum grau de poder a partir do monopólio derivado do paradigma anterior, quer seja tecnológico, organizacional, regulamentar ou econômico. Tal é a base do conceitro de "destruição criativa", pois tenciona explicar muitas das dinâmicas ou cinéticas de mutações industriais: A transição de um mercado competitivo para um mercado monopolista, e vice versa. Foi a inspiração da teoria do crescimento endógeno e também da economia evolucionária.



Keynes


John Maynard Keynes (*1883, +1946), foi um economista britânico cujos ideais serviram de influência para a macroeconomia moderna, tanto na teoria quanto na prática. Ele defendeu uma política econômica de Estado intervencionista, através da qual os governos adotam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos - recessão, depressão e booms. Suas ideias serviram de base para a escola de pensamento conhecida como economia keynesiana.


[John Maynard Keynes]

Na década de 1930, Keynes iniciou uma revolução no pensamento econômico, se opondo às ideias da economia neoclássica que defendiam que os mercados livres ofereceriam automaticamente empregos aos trabalhadores contanto que eles fossem flexíveis em suas demandas salariais. Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, as ideias econômicas de Keynes foram adotadas pelas principais potências econômicas do Ocidente. Durante as décadas de 1950 e 1960, o sucesso da economia keynesiana foi tão retumbante que quase todos os governos capitalistas adotaram suas recomendações.


A influência de Keynes na política econômica declinou na década de 1970, parcialmente como resultado de problemas que começaram a afligir as economias estadunidense e britânica no início da década e também devido às críticas de Milton Friedman, Hayek e outros economistas neoliberais pessimistas em relação à capacidade do Estado de regular o ciclo econômico com políticas fiscais. Entretanto, o advento da crise econômica global do final da década de 2000 causou um ressurgimento do pensamento keynesiano. A economia keynesiana forneceu a base teórica para os planos do presidente estadunidense Barack Obama, do primeiro-ministro britânico Gordon Brown e de outros líderes mundiais para aliviar os efeitos da recessão.


Teoria Austríaca do Ciclo Económico [TACE]

Posteriormente e concomutantamente, diversas hipóteses surgiram, complementando ou alterando a configuração básica dos ciclos econômicos tal como proposta por Kondratiev e Schumpeter. Uma destas versões, a teoria austríaca do ciclo económico (TACE) procura explicar o ciclo econômico através de um conjunto de causas crônicas, tal como propostas pela escola austríaca de economia (EAE).

Os fundadores da teoria austríaca do ciclo econômico historicamente foram Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Hayek ganhou o Prémio Nobel de Economia em 1974 (partilhado com Gunnar Myrdal), em parte, por seu trabalho sobre esta teoria. Resumidamente a TACE caracteriza o ciclo longo a partir de quatro fases, apelidadas com o nome das estações do ano. De acordo com a TACE, a característica de cada uma destas fases é resumidamente descrita no infográfico abaixo[[5]].


 [principais características da onda longa, segundo a TACE]


Pela teoria, os ciclos econômicos são vistos como uma consequência inevitável do crescimento excessivo da concessão de crédito, amplificada por políticas governamentais ineficazes e destrutivas dos bancos centrais (ver este post a respeito), que diminuem a taxa de juro em demasia por muito tempo. Tais ações, por sua vez levam a um boom insustentável durante o qual o empréstimo, artificialmente estimulado, acaba por diminuir as oportunidades de investimento. Esse boom resulta em maus investimentos (malinvestments) generalizados, fazendo que os recursos de capitais sejam mal distribuídos em áreas que não atrairiam investimentos se os "sinais" de preço não fossem distorcidos. A crise de correção ou de crédito ocorre quando a criação de crédito não pode ser sustentada. O mercado finalmente se "limpa" (falências), causando realocação de recursos que são redistribuídos para usos mais eficientes.


Atuais Contribuições da TACE

Mesmo dentro da denominada escola austríaca de economia, existem atualmente várias linhas de pensamento[[6]], e há diferenças claras entre elas. Porém, aparentemente, a abordagem dominante hoje em dia é a anarco-capitalista de Murray Rothbard, Hans-Hermann Hoppe e outros. Trata-se de uma forma de capitalismo que é ainda mais libertária e anárquica do que a defendida por muitos libertários[[7]].

Como disse Matthew Yglesias em recente artigo publicado no site slate.com: "A 'economia austríaca', neste sentido, vai além do pensamento padrão de mercado livre em um número de maneiras. mais notavelmente, ela [a escola austríaca] busca construir um forte caso ético  para o libertarianismo estrito sem admitir que isso levaria a problemas concretos, em absoluto. Portanto, juntamente com a rejeição da legitimidade de qualquer intervenção para proteger os pobres ou regular algo (uma posição muito mais radical do que até mesmo a de Hayek do Caminho da Servidão), os atuais austríacos rejeitam a idéia de que há qualquer coisa em fim, que o governo possa fazer para estabilizar as flutuações da macroeconômia."

E continua Yglesias: "Os austríacos também acreditam que o corte de impostos para impulsionar a atividade econômica também não funciona. Eles não concordam com a idéia de Milton Friedman de que um apropriado estímulo monetário feito pelo FED (o banco central americano) poderia ter evitado a Grande Depressão. Na verdade, eles discordam, mesmo da menos controversa de todas as medidas de estabilização, o ajuste normal das taxas de juro de curto prazo que todos os bancos centrais modernos usam para tentar impedir tanto inflação quanto deflação. Na visão dos austríacos, praticamente todas as políticas econômicas lançadas pelos governos federais [e respectivos bancos centrais] são erros que distorcem os mercados. Em vez de curar as recessões, os austríacos afirmam que as políticas de estímulo as causam, produzindo bolhas insustentáveis."

De qualquer forma é inegavel a importante contribuição da teoria austríaca do ciclo econômico na compreesão mais abrangente dos vários efeitos de longo alcance dos ciclos econômicas, e muitos de seus nefastos mecanismos (inflação, desemprego, formação de bolhas imobiliárias, especulações, falências, etc). No momento em que foi apresentada, a teoria do ciclo de negócios de Mises e Hayek era realmente um avanço teórico muito grande. Os principais concorrentes eram os defensores ortodoxos da Lei de Say, que negavam que um ciclo de negócios fosse possível (o desemprego era atribuído a sindicatos ou a salários mínimos impostos pelo governo), além dos marxistas que ofereciam um modelo de crise catastrófico, impulsionado pelo declínio da taxa de lucro. Os austríacos foram, de fato, os primeiros a oferecer boas razões para a não-neutralidade da moeda. A expansão da oferta de moeda iria diminuir (curto prazo) as taxas de juros e, portanto, fazer os investimentos mais atrativos.

No entanto, segundo análise feita pelo economista e professor da Universidade Johns Hopkins, John Quiggin (aqui resumida em seu pontos principais):

Ha uma implicação óbvia sobre a possível inferência extraída dos resultados do mercado. Se investidores antecipam corretamente que um declínio nas taxas de juros será temporário, pela lógica, eles não iriam avaliar investimentos de longo prazo com base em taxas atuais. Assim, a teoria austríaca exige uma falha racional de expectativas ou ainda uma falha no mercado de capitais, o que significa que os indivíduos racionalmente optariam por fazer 'maus' investimentos no pressuposto de que alguém vai arcar com o custo. E se qualquer uma destas condições se aplica, não há razão para pensar que os resultados do mercado serão ótimos afinal.

Isso implica que, no modelo austríaco, o consumo deveria ser negativamente correlacionado com os investimentos ao longo do ciclo de negócios, quando na realidade o oposto é verdadeiro. Na medida em que booms são movidos por crenças equivocadas de que os investimentos se tornam mais rentáveis, são, portanto tipicamente caracterizados por alto consumo, e não baixo.

E ainda, a teoria austríaca aborda pouco a questão dos mercados de trabalho, mas para a imensa maioria das pessoas, é o desemprego o que torna o ciclo de negócios um problema. Coube a Keynes produzir uma teoria em que, a não neutralidade da moeda poderia produzir um certo "desemprego sustentado". A idéia de ciclo de crédito pode ser facilmente combinada com uma forma keynesiana de sub-emprego de equilíbrio, e ainda mais facilmente com a idéia keynesiana de 'espírito animal'. Isso foi feito de forma mais destacada por Minsky, e a idéia de espíritos animais foi recentemente revivida por Akerlof e Shiller.

Infelizmente, tendo dado os primeiros passos na direção de uma teoria séria do ciclo de negócios, Hayek e Mises passaram o resto de suas vidas dando duro na direção oposta, alimentando e realimentando seu declarado ódio contra o socialismo, marxismo e suas muitas vertentes. De fato, Hayek e Mises (e muitos dos atuais economistas austríacos) ao interpretar a crise de 1929, adotaram uma visão que -– apesar de não implícita pela teoria -- reflete claramente um compromisso a priori dos autores ao laissez-faire. O resultado foi que Hayek perdeu o apoio até mesmo de simpatizantes iniciais, e, ainda de acordo com John Quiggin, "esse erro tem se enrijecido em verdadeiro dogma nas mãos de seus atuais sucessores."



O Fluxo de Causalidade

Como visto, apesar de historicamente importante e relevante, nas últimas décadas a teoria austríaca dos ciclos econômicos se manteve estagnada em função de compromissos ideológicos anti-intervencionistas radicais por parte de seus atuais defensores. E ademais, a interpretação dos eventos, efeitos e consequências detro dos ciclos econômicos na teoria austríaca não contribui, de fato, para explicar as reais causas estruturais presentes e erradicadas dentro do sociometabolismo das crises. A abordagem austríaca (que adota sempre o ponto de vista do capital), analisa o ciclo econômico sempre a partir de seus efeitos para a partir deles tirar conclusões, tais como os malinvestiments, (provável efeito da expansão monetária provocada pelos governos). Porém -- assumindo por hora que os investidores ingenuamente erram em suas previsões ao apostar em investimentos de longo prazo a partir de taxas de juros artificialmente baixas –- ainda assim resta uma questão: por quê tais investimentos deveriam ser classificados como malinvestiments?

No argumento da EAE, quando um governo expande a oferta de moeda  "imprimindo dinheiro",  facilitando o crédito e aliviando taxas de empréstimo, etc - isso artificialmente aumenta os investimentos, os quais são denominados de mau-investimentos (malinvestiment), em projetos que não teriam sido iniciados, caso tais ofertas de crédito não ocorressem, visto que, segundo a interpretação da TACE, atingem proporções suficientes que precisam passar por um "processo de realocação", e o resultado seria recessão.

No entanto, tal argumentação se apóia na "lógica" dedutiva de que mal-investimentos vão inevitavelmente ocorrer. É fato que bancos centrais permintem e incentivam investimentos que do contrário estariam aguardando por ocorrer, porém, de acordo com a teoria austríaca, investimentos de qualquer tipo, quando estagnados devido a recessão, ficam "marcados" como sendo mau-investimentos caso os governos tomem medidas para deixa-los acontecer. Acreditar ou não que tais investimentos teriam sido mais sólidos numa economia de expanssão depende exclusivamente do que se deseja crer à priori.

A argumentação com base no "processo de realocação" esconde na verdade uma outra realidade muito mais estrutural característica do sociometabolismo das crises. Em princípio, investimentos somente se tornam "maus" quando sua contrapartida, ou sua consequência direta, não atinge e não contempla o tecido social como um todo. Ou seja, quando este dinheiro virtualmente "flui" das máquinas de impressão do governo até as mãos de poderosos (acionistas, CEOs, ricos homens de negócio, políticos corruptos, investidores parasitas, banqueiros e afins) com a única, inevitável, "incômoda" e necessária extração de excedentes dos trabalhadores, os quais realmente produzem e carregam, alienados e compactuados, toda esta absurda realidade nas costas.

Ao conjecturar com base em tais argumentos, o primeiro clamor, ou a primeira colocação a ser repondida é como, ou "com base em que?", tais hipóteses podem ser colocadas. De fato, recentemente diversos autores tem contribuído com verdadeiras "garimpagens", e oferecido ao público vultuosos bancos de dados com preciosas e claras informações acerca da distribuição de renda no passar dos anos para diversos países. Tais compilações abrangentes e organizadas de dados praticamente inexistiam até recentemente, e o acesso a estas informações era escasso e difícil. Um destes autores, o economista francês Emanuel Saez, diretor do Center for Equitable Growth, da University of California Berkeley, tem publicado uma série de artigos e dados onde reúne, organiza e analisa informações acerca da desigualdade de renda nos Estadosunidos e em diversos outros países.

Antes de seguir com a análise, deve-se enfatizar que a hipótese aqui exposta não tem, obviamente, a intenção de encerrar o assunto, nem de elucidar em definitivo a questão -- que envolve, obviamente, diversos outros fatores e processos -- mas tão somente lançar luz em outras questões, que aparentemente (até onde pudemos verificar) ficam relegadas à desimportância e classificadas como meros efeitos, quando na verdade, uma outra abordagem pode nos apontar, ou elucidar, exatamente o contrário.

Uma outra contribuição importante de Saez, além da valiosa coleta, organização e análise dos dados, é buscar um enfoque mais objetivo, claro e direto na análise interpretativa destes dados, ao publicar a distribuição de renda nos países de acordo com parcelas percentuais concentradas no topo mais rico, evitando assim interpretações de curvas e coeficientes complicados e abstratos. De acordo com Saez, "a medida de síntese mais comumente utilizada de desigualdade geral, o coeficiente de Gini, é mais sensível às transferências no centro da distribuição do que a nos extremos. (O coeficiente de Gini é definido como a razão entre a área entre a curva de Lorenz e a linha de igualdade sobre a área total sob a linha de igualdade). Mas as parcelas de renda no topo podem afetar materialmente a desigualdade global", tal como demonstra Saez em seu trabalho.

Apesar de a inferência direta com os ciclos econômicos não ser exatamente o foco de Saez em suas análises, seus dados demonstram uma clara correspondência entre as oscilações das ondas longas de Kondratiev com as oscilações de desigualdade de renda dentre as pessoas nos países.


[Parcela de Renda dos 10% mais ricos nos Estadosunidos]


O gráfico da figura acima[[8]] mostra o caso particular da parcela de renda dos 10% mais ricos nos Estadosunidos, onde pode-se verificar que, segundo Saez, "a parte do rendimento total que vai para as faixas de renda superiores aumentou dramaticamente nas últimas décadas nos Estados Unidos e em muitos outros países (...). Tomando o caso dos EUA, (...) depois de um declínio (de 10 pontos percentuais) precipitada durante a Segunda Guerra Mundial e da estabilidade nas décadas do pós-guerra, a participação decil superior subiu (um aumento de mais de 10 pontos percentuais) desde os anos 1970 e chegou a quase 50 por cento até 2007, o maior nível já registrado."

Olhando para esta curva, é inevitável pensar na similaridade que ela apresenta com os altos e baixos das ondas longas de Kondratiev. A figura seguinte sobrepõe a curva característica das ondas longas de Kondratiev sobre a curva da parcela de renda dos 10% mais ricos nos Estadosunidos.


 [parcela de renda dos mais ricos e a onda longa]

Fica clara a possibilidade de inferência, e a possibilidade de se colocar como um fator preponderante das crises – junto da superprodução, e da extração de excedentes – a superacumulação de renda por parte de uma pequena parcela da sociedade. Porém, é de se esperar que outros analistas aleguem, sempre pela ótica do capital, que isso não passa de mero efeito menor da crise - visto que – alegam os liberais convíctos – a questão da desigualdade é "algo inevitável", é "reflexo do mérito individual", é o "resutlado do esforço", da "disciplina, sobriedade, comprometimento e princípios" etc... e assim sendo, consequentemente, os que não ascendem socialmente para a faixa superior da distribuição de renda são os incapazes, os preguiçosos, os vagabundos, os descomprometidos, os que "não merecem", etc. Ora, se assim o fosse, a parcela da renda correspondente aos 10% mais ricos – ou os mais capazes, dignos, dedicados, inteligentes, trabalhadores e esforçados – não sofreria toda esta clara e evidente oscilação, acompanhando (ou antes contribuindo para) as intempéries das crises, e se manteria relativamente estável durante todo o período. Mas não é bem isso que nos mostra a curva acima levantada por Saez...

A hipótese conjunta de superprodução, extração de excedentes e superacumulação não é nova, e já se apresentava nos trabalhos de Marx e Engels, e foi diversas vezes colocada, revista e atualizada por diferentes autores, porém, a questão da distribuição de renda, como um dos fatores preponderantes das crises, carecia de aporte empírico fortalecido (apesar de ser afirmativamente apresentada e analisada pelos coeficiente de Gini, e outras análises). O excelente trabalho de Saez tem contribuído ao preencher esta lacuna, e tem colocado em evidência tais questões, o que, de fato, tem deixado muitos defensores da ordem existente bastante encabulados.

Para Concluir com as palávras de Saez: "Há um grande número de razões para estudar o desenvolvimento das parcelas de rendimento no topo. Entender o grau de desigualdade pelo topo e a importância relativa dos diferentes fatores que levam às crescentes partes superiores é importante no dimensionamento de políticas públicas. A preocupação com o aumento da parcela de renda no topo em vários países tem levado a propostas de maiores taxas de imposto sobre esta parcela superiore; outros países estão considerando limites de remuneração e bônus. A distribuição global está sob crescente escrutínio a medida que globalização avança."


[1] [http://paulgrignon.netfirms.com/MoneyasDebt/index.htm] As ilustrações presentes no texto que forem provenientes dos cartoons de Paul Grignon conterão em sua legenda o seguinte acrônimo: (PG, MaD) de Paul Grignon, Money as Debt.
[2] Sobre este assunto, ver [em inglês]: [http://www.economictheories.org/2008/11/over-production-and-under-consumption.html], [http://theweek.com/article/index/95385/the-panic-of-1825], [http://en.wikipedia.org/wiki/Business_cycle#cite_note-1]
[3] De sua época, pois diversas particularidades do sistema do capital vigentes à época de Marx foram modificadas e/ou adaptadas para a realidade atual de um sistema de abrangência global, o que remete às atualizações do pensamento de Marx (Escola de Frankfurt, István Mészáros, Slavoj Žižek, Antonio Negri, Zygmunt Bauman, dentre vários outros).
[4] [http://www.marxist.com/marxism-theory-long-waves-kondratiev141100.htm]
[5] Descrições parcialmente obtidas de www.longwavecycles.com/

[6] Ver a respeito: [http://socialdemocracy21stcentury.blogspot.com/2010/12/different-types-of-austrian-economics.html]
[7] Os seguidores de Rothbard, associados do Instituto Mises, tem travado uma "guerra" de décadas contra os irmãos Koch e contra a forma mais mainstream de libertarianismo que os mesmos representam. Ver a respeito: http://www.lewrockwell.com/gordon/gordon37.html
[8] Saez, Emmanuel, et al, Top Incomes in the Long Run of History,   Journal of Economic Literature 2011, 49:1, 3–71
http:www.aeaweb.org/articles.php?doi=10.1257/jel.49.1.3

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

balanço do neoliberalismo



Perry Anderson





Comecemos com as origens do que se pode definir do neoliberalismo como fenômeno distinto do simples liberalismo clássico, do século passado. O neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, escrito já em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política. O alvo imediato de Hayek, naquele momento, era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral de 1945 na Inglaterra, que este partido efetivamente venceria. A mensagem de Hayek é drástica: "Apesar de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão – uma servidão moderna".

Três anos depois, em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em outros países, neste momento Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Entre os célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. Na seleta assistência encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre outros. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro.



Karl Popper (atrás, centro), Ludwig von Mises (a frente, direita) e ooutros participantes durante a primeira sessão da sociedade Mont Pelerin Society em 1947. [fonte]


As condições para este trabalho não eram de todo favoráveis, uma vez que o capitalismo avançado estava entrando numa longa fase de auge sem precedentes – sua idade de ouro –, apresentando o crescimento mais rápido da história, durante as décadas de 50 e 60. Por esta razão, não pareciam muito verossímeis os avisos neoliberais dos perigos que representavam qualquer regulação do mercado por parte do Estado. A polêmica contra a regulação social, no entanto, tem uma repercussão um pouco maior. Hayek e seus companheiros argumentavam que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles argumentavam que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em si –, pois disso precisavam as sociedades ocidentais. Esta mensagem permaneceu na teoria por mais ou menos 20 anos.

A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973, quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais.

Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e desencadearam processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa crise generalizada das economias de mercado. O remédio, então, era claro: manter um Estado forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os rendimentos mais altos e sobre as rendas. Desta forma, uma nova e saudável desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas, então às voltas com uma estagflação, resultado direto dos legados combinados de Keynes e de Beveridge, ou seja, a intervenção anticíclica e a redistribuição social, as quais haviam tão desastrosamente deformado o curso normal da acumulação e do livre mercado. O crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os incentivos essenciais houvessem sido restituídos.

A hegemonia deste programa não se realizou do dia para a noite. Levou mais ou menos uma década, os anos 70, quando a maioria dos governos da OCDE – Organização Européia para o Comércio e Desenvolvimento – tratava de aplicar remédios keynesianos às crises econômicas. Mas, ao final da década, em 1979, surgiu a oportunidade. Na Inglaterra, foi eleito o governo Thatcher, o primeiro regime de um país de capitalismo avançado publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal. Um ano depois, em 1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos. Em 1982, Khol derrotou o regime social liberal de Helmut Schimidt, na Alemanha. Em 1983, a Dinamarca, Estado modelo do bem-estar escandinavo, caiu sob o controle de uma coalizão clara de direita, o governo de Schluter. Em seguida, quase todos os países do norte da Europa ocidental, com exceção da Suécia e da Áustria, também viraram à direita. A partir daí, a onda de direitização desses anos tinha um fundo político para além da crise econômica do período. Em 1978, a segunda guerra fria eclodiu com a intervenção soviética no Afeganistão e a decisão norte-americana de incrementar uma nova geração de foguetes nucleares na Europa ocidental. O ideário do neoliberalismo havia sempre incluído, como componente central, o anticomunismo mais intransigente de todas as correntes capitalistas do pós-guerra. O novo combate contra o império do mal – a servidão humana mais completa aos olhos de Hayek – inevitavelmente fortaleceu o poder de atração do neoliberalismo político, consolidando o predomínio da nova direita na Europa e na América do Norte. Os anos 80 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da ideologia neoliberal nesta região do capitalismo avançado.


[capa do livro The General Theory of Employment, Interest and Money, de J. M. Keynes, que forneceu as bases das políticas intervencionistas anticíclicas]

O que fizeram, na prática, os governos neoliberais deste período? O modelo inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –, se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências neoliberais em países de capitalismo avançado.

A variante norte-americana era bem distinta. Nos Estados Unidos, onde quase não existia um Estado de bem-estar do tipo europeu, a prioridade neoliberal era mais a competição militar com a União Soviética, concebida como uma estratégia para quebrar a economia soviética e, por esta via, derrubar o regime comunista na Rússia. Deve-se ressaltar que, na política interna, Reagan também reduziu os impostos em favor dos ricos, elevou as taxas de juros e aplastou a única greve séria de sua gestão. Mas, decididamente, não respeitou a disciplina orçamentária; ao contrário, lançou-se numa corrida armamentista sem precedentes, envolvendo gastos militares enormes, que criaram um déficit público muito maior do que qualquer outro presidente da história norte-americana. Mas esse recurso a um keynesianismo militar disfarçado, decisivo para uma recuperação das economias capitalistas da Europa ocidental e da América do Norte, não foi imitado. Somente os Estados Unidos, por causa de seu peso na economia mundial, podiam dar-se ao luxo do déficit massivo na balança de pagamentos que resultou de tal política.

No continente europeu, os governos de direita deste período – amiúde com fundo católico – praticaram em geral um neoliberalismo mais cauteloso e matizado que as potências anglo-saxônicas, mantendo a ênfase na disciplina orçamentária e nas reformas fiscais, mais do que em cortes brutais de gastos sociais ou enfrentamentos deliberados com os sindicatos. Contudo, a distância entre estas políticas e as da social-democracia governante anterior já era grande. E, enquanto a maioria dos países no norte da Europa elegia governos de direita empenhados em várias versões do neoliberalismo, no sul do continente – território de De Gaulle, Franco, Salazar, Fanfani, Papadopoulos, etc. –, previamente uma região muito mais conservadora politicamente, chegavam ao poder, pela primeira vez, governos de esquerda, chamados de euro-socialistas: Miterrand, na França; González, na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália; Papandreou, na Grécia. Todos se apresentavam como uma alternativa progressista, baseada em movimentos operários ou populares, contrastando com a linha reacionária dos governos de Reagan, Thatcher, Khol e outros do norte da Europa. Não há dúvida, com efeito, de que pelo menos Miterrand e Papandreou, na França e na Grécia, genuinamente se esforçaram para realizar uma política de deflação e redistribuição, de pleno emprego e de proteção social. Foi uma tentativa de criar um equivalente no sul da Europa do que havia sido a social-democracia do pós-guerra no norte do continente em seus anos de ouro. Mas o projeto fracassou, e já em 1982 e 1983 o governo socialista na França se viu forçado pelos mercados financeiros internacionais a mudar seu curso dramaticamente e reorientar-se para fazer uma política muito próxima à ortodoxia neoliberal, com prioridade para a estabilidade monetária, a contenção do orçamento, concessões fiscais aos detentores de capital e abandono do pleno emprego. No final da década, o nível de desemprego na França socialista era mais alto do que na Inglaterra conservadora, como Thatcher se gabava amiúde de assinalar. Na Espanha, o governo de González jamais tratou de realizar uma política keynesiana ou redistributiva. Ao contrário, desde o início o regime do partido no poder se mostrou firmemente monetarista em sua política econômica: grande amigo do capital financeiro, favorável ao princípio de privatização e sereno quando o desemprego na Espanha rapidamente alcançou o recorde europeu de 20% da população ativa.

Enquanto isso, no outro lado do mundo, na Austrália e na Nova Zelândia, o mesmo padrão assumiu proporções verdadeiramente dramáticas. Sucessivos governos trabalhistas ultrapassaram os conservadores locais de direita com programas de neoliberalismo radical – na Nova Zelândia, provavelmente o exemplo mais extremo de todo o mundo capitalista avançado, desmontando o Estado de bem-estar muito mais completa e ferozmente do que Thatcher na Inglaterra.

O que demonstravam estas experiências era a hegemonia alcançada pelo neoliberalismo como ideologia. No início, somente governos explicitamente de direita radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo, inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal. O neoliberalismo havia começado tomando a social-democracia como sua inimiga central, em países de capitalismo avançado, provocando uma hostilidade recíproca por parte da social-democracia. Depois, os governos social-democratas se mostraram os mais resolutos em aplicar políticas neoliberais. Nem todas as social-democracias, bem entendido. Ao final dos anos 80, a Suécia e a Áustria ainda resistiam à onda neoliberal da Europa. E, fora do continente europeu, o Japão também continuava isento de qualquer pressão ou tentação neoliberal. Mas, nos demais países da OCDE, as idéias da Sociedade de Mont Pèlerin haviam triunfado plenamente. Poder-se-ia perguntar qual a avaliação efetiva da hegemonia neoliberal no mundo capitalista avançado, pelo menos durante os anos 80. Cumpriu suas promessas ou não? Vejamos o panorama de conjunto. A prioridade mais imediata do neoliberalismo era deter a grande inflação dos anos 70. Nesse aspecto, seu êxito foi inegável. No conjunto dos países da OCDE, a taxa de inflação caiu de 8,8% para 5,2%, entre os anos 70 e 80, e a tendência de queda continua nos anos 90. A deflação, por sua vez, deveria ser a condição para a recuperação dos lucros. Também nesse sentido o neoliberalismo obteve êxitos reais. Se, nos anos 70, a taxa de lucro das indústrias nos países da OCDE caiu em cerca de 4,2%, nos anos 80 aumentou 4,7%. Essa recuperação foi ainda mais impressionante na Europa Ocidental como um todo, de 5,4 pontos negativos para 5,3 pontos positivos. A razão principal dessa transformação foi, sem dúvida, a derrota do movimento sindical, expressado na queda drástica do número de greves durante os anos 80 e numa notável contenção dos salários. Essa nova postura sindical, muito mais moderada, por sua vez, em grande parte era produto de um terceiro êxito do neoliberalismo, ou seja, o crescimento das taxas de desemprego, concebido como um mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente. A taxa média de desemprego nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4% nos anos 70, pelo menos duplicou na década de 80. Também este foi um resultado satisfatório. Finalmente, o grau de desigualdade – outro objetivo sumamente importante para o neoliberalismo – aumentou significativamente no conjunto dos países da OCDE: a tributação dos salários mais altos caiu 20% em média nos anos 80, e os valores das bolsas aumentaram quatro vezes mais rapidamente do que os salários.

Então, em todos estes itens, deflação, lucros, empregos e salários, podemos dizer que o programa neoliberal se mostrou realista e obteve êxito. Mas, no final das contas, todas estas medidas haviam sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como existiam antes da crise dos anos 70. Nesse aspecto, no entanto, o quadro se mostrou absolutamente decepcionante. Entre os anos 70 e 80 não houve nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE. Dos ritmos apresentados durante o longo auge, nos anos 50 e 60, restam somente uma lembrança distante.



Qual seria a razão deste resultado paradoxal? Sem nenhuma dúvida, o fato de que – apesar de todas as novas condições institucionais criadas em favor do capital – a taxa de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de equipamentos produtivos, não apenas não cresceu durante os anos 80, como caiu em relação a seus níveis – já médios – dos anos 70. No conjunto dos países de capitalismo avançado, as cifras são de um incremento anual de 5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos anos 80. Uma curva absolutamente descendente.

Cabe perguntar por que a recuperação dos lucros não levou a uma recuperação dos investimentos. Essencialmente, pode-se dizer, porque a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva. Durante os anos 80 aconteceu uma verdadeira explosão dos mercados de câmbio internacionais, cujas transações, puramente monetárias, acabaram por diminuir o comércio mundial de mercadorias reais. O peso de operações puramente parasitárias teve um incremento vertiginoso nestes anos. Por outro lado – e este foi, digamos, o fracasso do neoliberalismo –, o peso do Estado de bem-estar não diminuiu muito, apesar de todas as medidas tomadas para conter os gastos sociais. Embora o crescimento da proporção do produto bruto nacional consumida pelo Estado tenha sido notavelmente desacelerado, a proporção absoluta não caiu, mas aumentou, de mais ou menos 46% para 48% do PNB médio dos países da OCDE durante os anos 80. Duas razões básicas explicam este paradoxo: o aumento dos gastos sociais com o desemprego, que custaram bilhões ao Estado, e o aumento demográfico dos aposentados na população, que levou o Estado a gastar outros bilhões em pensões.

Por fim, ironicamente, quando o capitalismo avançado entrou de novo numa profunda recessão, em 1991, a dívida pública de quase todos os países ocidentais começou a reassumir dimensões alarmantes, inclusive na Inglaterra e nos Estados Unidos, enquanto que o endividamento privado das famílias e das empresas chegava a níveis sem precedentes desde a II Guerra Mundial. Atualmente, com a recessão dos primeiros anos da década de 90, todos os índices econômicos tornaram-se muito sombrios nos países da OCDE, onde, presentemente, há cerca de 38 milhões de desempregados, aproximadamente duas vezes a população total da Escandinávia. Nestas condições de crise muito aguda, pela lógica, era de se esperar uma forte reação contra o neoliberalismo nos anos 90. Isso aconteceu? Ao contrário, por estranho que pareça, o neoliberalismo ganhou um segundo alento, pelo menos em sua terra natal, a Europa. Não somente o thatcherismo sobreviveu à própria Thatcher, com a vitória de Major nas eleições de 1992 na Inglaterra. Na Suécia, a social-democracia, que havia resistido ao avanço neoliberal nos anos 80, foi derrotada por uma frente unida de direita em 1991. O socialismo francês saiu bastante desgastado das eleições de 1993. Na Itália, Berlusconi – uma espécie de Reagan italiano – chegou ao poder à frente de uma coalizão na qual um dos integrantes era um partido oficialmente facista até recentemente. Na Alemanha, o governo de Kohl provavelmente continuará no poder. Na Espanha, a direita está às portas do poder.

Mas, para além desses êxitos eleitorais, o projeto neoliberal continua a demonstrar uma vitalidade impressionante. Seu dinamismo não está ainda esgotado, como se pode ver na nova onda de privatizações em países até recentemente bastante resistentes a elas, como Alemanha, Áustria e Itália. A hegemonia neoliberal se expressa igualmente no comportamento de partidos e governos que formalmente se definem como seus opositores. A primeira prioridade do presidente Clinton, nos Estados Unidos, foi reduzir o déficit orçamentário, e a segunda foi adotar uma legislação draconiana e regressiva contra a delinqüência, lema principal também da nova liderança trabalhista na Inglaterra. O temário político segue sendo ditado pelos parâmetros do neoliberalismo, mesmo quando seu momento de atuação econômica parece amplamente estéril ou desastroso. Como explicar esse segundo alento no mundo capitalista avançado? Uma de suas razões fundamentais foi claramente a vitória do neoliberalismo em outra área do mundo, ou seja, a queda do comunismo na Europa oriental e na União Soviética, de 89 a 91, exatamente no momento em que os limites do neoliberalismo no próprio Ocidente tornavam-se cada vez mais óbvios. Pois a vitória do Ocidente na guerra fria, com o colapso de seu adversário comunista, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas o do tipo específico liderado e simbolizado por Reagan e Thatcher nos anos 80. Os novos arquitetos das economias pós-comunistas no Leste, gente como Balcerovicz na Polônia, Gaidar na Rússia, Klaus, na República Tcheca, eram e são seguidores convictos de Hayek e Friedman, com um menosprezo total pelo keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e, em geral, por todo o modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra. Estas lideranças políticas preconizam e realizam privatizações muito mais amplas e rápidas do que haviam sido feitas no Ocidente. Para sanear suas economias, aceitam quedas de produção infinitamente mais drásticas do que haviam sido aceitas no Ocidente. E promovem graus de desigualdade – sobretudo de empobrecimento da maior parte da população – muito mais brutais do que tínhamos visto nos países do Ocidente.

Não há neoliberais mais intransigentes no mundo do que os "reformadores" do Leste. Dois anos atrás, Vaclav Klaus, primeiro-ministro da República Tcheca, atacou publicamente o presidente do Federal Reserve Bank dos Estados Unidos no governo Reagan, Allan Greenspan, acusando-o de demonstrar debilidade e frouxidão lamentáveis em sua política monetária. Em artigo para a revista The Economist, Klaus foi incisivo: "O sistema social da Europa ocidental está demasiadamente amarrado por regras e pelo controle social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as suas transferências de pagamentos generosos desligados de critérios, de esforços ou de méritos, destrói a moralidade básica do trabalho e o sentido de responsabilidade individual. Há excessiva proteção e burocracia. Deve-se dizer que a revolução thatcheriana, ou seja, antikeynesiana ou liberal, parou – numa avaliação positiva – no meio do caminho na Europa ocidental e é preciso completá-la". Bem entendido, esse tipo de extremismo neoliberal, por influente que seja nos países pós-comunistas, também desencadeou uma reação popular, como se pôde ver nas últimas eleições na Polônia, na Hungria e na Lituânia, onde partidos ex-comunistas ganharam e agora governam de novo seus países. Mas, na prática, suas políticas no governo não se distinguem muito daquela de seus adversários declaradamente neoliberais. A deflação, a desmontagem de serviços públicos, as privatizações de empresas, o crescimento de capital corrupto e a polarização social seguem, um pouco menos rapidamente, porém com o mesmo rumo. A analogia com o euro-socialismo do sul da Europa é evidente. Em ambos os casos há uma variante mansa – pelo menos no discurso, senão sempre nas ações – de um paradigma neoliberal comum na direita e na esquerda oficial. O dinamismo continuado do neoliberalismo como força ideológica em escala mundial está sustentado em grande parte, hoje, por este "efeito de demonstração" do mundo pós-soviético. Os neoliberais podem gabar-se de estar à frente de uma transformação sócio-econômica gigantesca, que vai perdurar por décadas.

O impacto do triunfo neoliberal no leste europeu tardou a ser sentido em outras partes do globo, particularmente, pode-se dizer, aqui na América Latina, que hoje em dia se converte na terceira grande cena de experimentações neoliberais. De fato, ainda que em seu conjunto tenha chegado a hora das privatizações massivas, depois dos países da OCDE e da antiga União Soviética, genealogicamente este continente foi testemunha da primeira experiência neoliberal sistemática do mundo. Refiro-me, bem entendido, ao Chile sob a ditadura de Pinochet. Aquele regime tem a honra de ter sido o verdadeiro pioneiro do ciclo neoliberal da história contemporânea. O Chile de Pinochet começou seus programas de maneira dura: desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos. Tudo isso foi começado no Chile, quase um decênio antes de Thatcher, na Inglaterra. No Chile, naturalmente, a inspiração teórica da experiência pinochetista era mais norte-americana do que austríaca. Friedman, e não Hayek, como era de se esperar nas Américas. Mas é de se notar que a experiência chilena dos anos 70 interessou muitíssimo a certos conselheiros britânicos importantes para Thatcher, e que sempre existiram excelentes relações entre os dois regimes nos anos 80. O neoliberalismo chileno, bem entendido, pressupunha a abolição da democracia e a instalação de uma das mais cruéis ditaduras militares do pós-guerra. Mas a democracia em si mesma – como explicava incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do neoliberalismo. A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente tornar-se incompatíveis, se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos incondicionais de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade como quisesse. Nesse sentido, Friedman e Hayek podiam olhar com admiração a experiência chilena, sem nenhuma inconsistência intelectual ou compromisso de seus princípios. Mas esta admiração foi realmente merecida, dado que – à diferença das economias de capitalismo avançado sob os regimes neoliberais dos anos 80 – a economia chilena cresceu a um ritmo bastante rápido sob o regime de Pinochet, como segue fazendo com a continuidade da política econômica dos governos pós-Pinochet dos últimos anos.

Se o Chile, nesse sentido, foi a experiência-piloto para o novo neoliberalismo dos países avançados do Ocidente, a América Latina também proveu a experiência-piloto para o neoliberalismo do Oriente pós-soviético. Aqui me refiro, bem entendido, à Bolívia, onde, em 1985, Jeffrey Sachs já aperfeiçoou seu tratamento de choque, mais tarde aplicado na Polônia e na Rússia, mas preparado originariamente para o governo do general Banzer, depois aplicado imperturbavelmente por Victor Paz Estenssoro, quando surpreendentemente este último foi eleito presidente, em vez de Banzer. Na Bolívia, no fundo da experiência não havia necessidade de quebrar um movimento operário poderoso, como no Chile, mas parar a hiperinflação. E o regime que adotou o plano de Sachs não era nenhuma ditadura, mas o herdeiro do partido populista que havia feito a revolução social de 1952. Em outras palavras, a América Latina também iniciou a variante neoliberal "progressista", mais tarde difundida no sul da Europa, nos anos de euro-socialismo. Mas o Chile e a Bolívia eram experiências isoladas até o final dos anos 80.

A virada continental em direção ao neoliberalismo não começou antes da presidência de Salinas, no México, em 88, seguida da chegada ao poder de Menem, na Argentina, em 89, da segunda presidência de Carlos Andrés Perez, no mesmo ano, na Venezuela, e da eleição de Fujimori, no Peru, em 90. Nenhum desses governantes confessou ao povo, antes de ser eleito, o que efetivamente fez depois de eleito. Menem, Carlos Andrés e Fujimori, aliás, prometeram exatamente o oposto das políticas radicalmente antipopulistas que implementaram nos anos 90. E Salinas, notoriamente, não foi sequer eleito, mas roubou as eleições com fraudes.

Das quatro experiências viáveis desta década, podemos dizer que três registraram êxitos impressionantes a curto prazo – México, Argentina e Peru – e uma fracassou: Venezuela. A diferença é significativa. A condição política da deflação, da desregulamentação, do desemprego, da privatização das economias mexicana, argentina e peruana foi uma concentração de poder executivo formidável: algo que sempre existiu no México, um regime de partido único, com efeito, mas Menem e Fujimori tiveram de inovar na Argentina e no Peru com uma legislação de emergência, autogolpes e reforma da Constituição. Esta dose de autoritarismo político não foi factível na Venezuela, com sua democracia partidária mais contínua e sólida do que em qualquer outro país da América do Sul, o único a escapar de ditaduras militares e de regimes oligárquicos desde os anos 50. Daí o colapso da segunda presidência de Carlos Andrés.

Mas seria arriscado concluir que somente regimes autoritários podem impor com êxito políticas neoliberais na América Latina. A Bolívia, onde todos os governos eleitos depois de 1985, tanto de Paz Zamora, quanto de Sanchez Losada, continuaram com a mesma linha, está aí para comprovar o oposto. A lição que fica da longa experiência boliviana é esta: há um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas neoliberais das mais drásticas. Este equivalente é a hiperinflação. Suas conseqüências são muito parecidas. Recordo-me de uma conversa que tive no Rio de Janeiro, em 1987, quando era consultor de uma equipe do Banco Mundial e fazia uma análise comparativa de cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a presidência de Sarney não era uma taxa de inflação demasiado alta – como a maioria dos funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava –, mas uma taxa de inflação demasiado baixa. "Esperemos que os diques se rompam", ele disse, "precisamos de uma hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que falta neste país". Depois, como sabemos, a hiperinflação chegou ao Brasil, e as conseqüências prometem ou ameaçam – como se queira – confirmar a sagacidade deste neoliberal indiano.

A pergunta que está aberta é se o neoliberalismo encontrará mais ou menos resistência à implementação duradoura dos seus projetos aqui na América Latina do que na Europa ocidental ou na antiga União Soviética. Seria o populismo – ou obreirismo – latino-americano um obstáculo mais fácil ou mais difícil para a realização dos planos neoliberais do que a social-democracia reformista ou o comunismo? Não vou entrar nesta questão, uma vez que outros aqui podem julgar melhor do que eu. Sem dúvida, a resposta vai depender também do destino do neoliberalismo fora da América Latina, onde continua avançando em terras até agora intocadas por sua influência. Atualmente, na Ásia, por exemplo, a economia da Índia começa, pela primeira vez, a ser adaptada ao paradigma liberal, e até mesmo o Japão não está totalmente imune às pressões norte-americanas para abolir regras. A região do capitalismo mundial que apresenta mais êxitos nos últimos 20 anos é também a menos neoliberal, ou seja, as economias do extremo oriente – Japão, Coréia, Formosa, Cingapura, Malásia. Por quanto tempo estes países permanecerão fora da esfera de influência do neoliberalismo? Tudo que podemos dizer é que este é um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional. Eis aí algo muito mais parecido ao movimento comunista de ontem do que ao liberalismo eclético e distendido do século passado.

Nesse sentido, qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório. Este é um movimento ainda inacabado. Por enquanto, porém, é possível dar um veredicto acerca de sua atuação durante quase 15 anos nos países mais ricos do mundo, a única área onde seus frutos parecem, podemos dizer assim, maduros. Economicamente, o neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. A tarefa de seus opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes. Apenas não há como prever quando ou onde vão surgir. Historicamente, o momento de virada de uma onda é uma surpresa.

Autor: Perry Anderson, historiador, e professor de História e Sociologia na Universidade da Califórnia em Los Angeles e editor da New Left Review.


Referência:

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 09-23.